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Por que continuamos ensinando a ‘fundir aço’ em vez de resolver problemas?

Título alternativo: Uma nova abordagem para o ensino: do formalismo à aplicação significativa.

Nos últimos dias, conversando com um colega que está cursando uma graduação na área de exatas, me deparei com uma constatação preocupante: o modelo de ensino — especialmente o fundamental e médio, mas também o superior — segue obsoleto e ineficaz. Concluí o ensino médio há quase 30 anos e minha última graduação tem mais de duas décadas. O mais impressionante é perceber que, apesar das mudanças tecnológicas e sociais profundas, o ensino formal pouco evoluiu. Em muitos aspectos, até regrediu. A estrutura educacional atual, tanto no Brasil quanto em diversos outros países, permanece atrelada a paradigmas ultrapassados do século XIX, focada em memorização mecânica e em práticas pouco conectadas à realidade contemporânea.

Para ilustrar, imagine um curso de marcenaria. Naturalmente, esse curso precisa acontecer dentro de um período limitado de tempo. O que se espera é que o instrutor ensine o aluno a dominar o uso das ferramentas modernas da marcenaria, disponíveis no mercado, e a aplicá-las de forma eficiente para resolver problemas concretos. Seria completamente contraproducente exigir que o aluno aprenda, por exemplo, a cortar a própria madeira com técnicas rudimentares, fundir aço para fabricar suas ferramentas ou estudar os fundamentos metalúrgicos dos instrumentos. O objetivo é formar um bom marceneiro, não um ferreiro ou engenheiro de materiais.

A analogia é direta com o ensino das disciplinas de exatas. Ainda hoje, estudantes são forçados a decorar fórmulas e a repetir processos de dedução que estão disponíveis em livros, calculadoras científicas e softwares amplamente utilizados na prática profissional. Isso equivale a obrigá-los a "fundir o próprio aço", em vez de ensiná-los a usar bem as "ferramentas" que já existem.

É preciso uma mudança de paradigma. O foco do ensino deveria estar na compreensão dos problemas e na escolha apropriada das ferramentas matemáticas ou científicas para resolvê-los. Fórmulas não devem ser um obstáculo, mas instrumentos. Avaliações e provas, por exemplo, deveriam fornecer uma “caixa de ferramentas” com as fórmulas pertinentes ao conteúdo avaliado. A competência esperada do aluno deve ser saber interpretar o problema, identificar o modelo matemático adequado e aplicar a fórmula de forma eficaz, assim como um bom profissional sabe escolher e usar a ferramenta certa na hora certa.

Esse modelo não é apenas teórico — ele já é respaldado por evidências. Diversas pesquisas acadêmicas demonstram que permitir o uso de folhas de fórmulas durante avaliações não compromete a aprendizagem; ao contrário, melhora o desempenho dos alunos, reduz a ansiedade e incentiva a compreensão conceitual. Movimentos como o Reform Mathematics, que propõem o ensino centrado na resolução de problemas reais e na compreensão conceitual, têm apresentado resultados positivos em vários países. Além disso, o uso de ferramentas digitais, como o GeoGebra e calculadoras gráficas, já transformou a forma como muitos professores ensinam e como os alunos aprendem conteúdos complexos.

É claro que o estudo da dedução e da construção de fórmulas tem seu valor — mas esse aprofundamento deve ser reservado a quem escolhe seguir uma carreira acadêmica ou científica, como matemáticos teóricos ou físicos. Um engenheiro, um analista de sistemas ou um estatístico não precisa saber deduzir todas as fórmulas que utiliza, assim como um bom piloto não precisa saber construir um avião para voar com segurança.

Por fim, é importante destacar que essa proposta não se limita às ciências exatas. Em áreas das ciências humanas, como filosofia, história ou direito, o ensino também pode ser aprimorado com a adoção de metodologias mais práticas e centradas na aplicação. Em vez de decorar datas ou teorias, o aluno pode ser incentivado a analisar contextos, argumentar com base em fontes confiáveis e aplicar conceitos em situações reais — exatamente como um bom profissional faz.

A mudança de abordagem proposta aqui não é uma simplificação, mas uma qualificação do processo de aprendizagem. Ensinar a usar bem as ferramentas é mais poderoso — e útil — do que ensinar a construí-las do zero. O tempo de ensino é limitado e precioso, e deve ser usado para formar profissionais críticos, criativos e preparados para resolver problemas reais. A escola precisa parar de ensinar a "fundir aço" e começar a formar quem sabe "usar a chave de fenda certa na hora certa".

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